Publicada há 450 anos, obra ‘Os Lusíadas’ ganha releitura em cordel
Publicação: 18/03/2022

Poeta cego, Assis Ângelo fala sobre produção inspirada em Camões

Neste mês de março, quando a publicação do poema épico “Os Lusíadas” completa 450 anos, os brasileiros ganham uma versão em cordel da obra máxima de Luís Vaz de Camões (1524-1580).

A façanha foi cometida pelo poeta, jornalista e historiador de cultura popular Assis Ângelo, 69, cego há nove anos, ele próprio dono de uma coleção de 8.000 folhetos de cordel em seu apartamento nos Campos Elíseos, na região central de São Paulo.

“Aqui neste ambiente/ Eu venho para contar/ A história de um homem/ De força espetacular/ Que nunca fugiu à luta/ Nem na terra nem no mar”, começa Ângelo, na primeira de suas 247 estrofes de seis versos cada, todas elas com rimas em “ar” e sempre terminando com a palavra “mar” na última linha.

Já a obra original possui 1.102 estrofes com oito versos cada, em um esquema de rimas AB AB AB CC. Em um primeiro plano, narra a saga de Vasco da Gama pelos mares de Portugal até a Índia, passando pelo cabo da Boa Esperança, no sul da África. A viagem aconteceu entre 1497 e 1499. Mais do que isso, o livro glorifica a história do povo português (que dá título à obra) e suas conquistas.

“Os Lusíadas” se inspira em poemas épicos gregos e latinos, como “Ilíada”, de Homero (século 8 antes de Cristo) e “Eneida”, de Virgílio (século 1º). No poema, Vasco da Gama lida com deuses do panteão clássico, como Netuno e Baco. “Navegou que nem Titã/ Dia e noite sem parar/ Netuno tentou em vão/ Sua frota afundar/ Atirando sobre ela/ Estranhos seres do mar”, canta Ângelo.

Camões também criou diversos personagens, como o Velho do Restelo, símbolo dos pessimistas, que desdenha da viagem e diz que Gama chegará ao seu destino. Já a versão de Ângelo chama “A Fabulosa Viagem de Vasco do Mar – Adaptação Livre de ‘Os Lusíadas’ para Canto e Cordel”.

“Apesar de minha versão ser menor que ‘Os Lusíadas’ original, fiz questão de usar todos os personagens que aparecem na obra”, conta Assis Ângelo. “Além disso, criei dois personagens cantadores repentistas, que, no início, apresentam a história e, no final, falam de Camões.”

Sabe-se pouco de Camões, mas é certo que morreu pobre, tendo vivido de uma pequena pensão do rei dom Sebastião, concedida após a conclusão de seu livro épico. Boêmio e briguento, é famosa a história de que ele perdeu um olho em batalha na África, após se alistar.

“Já eu perdi os dois”, diz Ângelo, que ficou cego há nove anos, após sofrer descolamento nas retinas. A condição fez com que a produção de “A Fabulosa Viagem de Vasco do Mar” tenha sido repleta de empecilhos.

Para começar, apesar de ter estudado Camões na adolescência, na Paraíba, e ter voltado à obra constantemente anos depois, Ângelo não tinha os 8.816 versos na ponta da língua. Então entrou em ação sua filha caçula, Clarissa de Assis Ângelo. “Sempre baixo audiolivros para o meu pai”, conta ela. “Ele me pediu e encontrei uma leitura de ‘Os Lusíadas’ feita por um brasileiro no YouTube e gravei em um pendrive.” O arquivo tem 6 horas e meia de duração.

Ângelo ouvia algumas estrofes e criava as suas, ditando-as em seguida para algumas amigas e estudantes que o auxiliam na datilografia de textos no computador. Cristina Alves e Anna da Hora são algumas dessas mulheres, para quem, inclusive, Ângelo dedicou “A Fabulosa Viagem”. A dedicatória diz: “Às marinheiras Ana, Anna, Cilene, Clarissa, Cristina, Gabriela, Ivone, Lúcia e Soraya”.

Esta última é a radialista Soraya Costa, que, aos poucos, foi fazendo a locução para uma versão em audiolivro do cordel. “Fizemos umas três ou quatro versões, até que ficamos satisfeitos”, conta ela. “Depois, adicionei algumas músicas e efeitos.” A versão lida por Soraya tem pouco mais de uma hora.

Até agora, nem o audiolivro nem o poema escrito de Assis Ângelo foram publicados, mas a intenção do autor é outra. “Fiz uma ópera popular. O que eu mais gostaria que acontecesse é que essa ópera chegasse aos palcos, com cada personagem sendo interpretados por atores, músicos e bailarinos cantando essa fabulosa viagem em formato de cordel.”

Fonte: Folha de São Paulo, por Ivan Finotti

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