José William realizará sonho de ter texto publicado em livro
Um senhor negro com cabelo bem aparado, vestido em um paletó escuro e uma camisa listrada, caminha entre as prateleiras de uma biblioteca em São Paulo. Ele está bem perfumado e, apesar dos óculos à disposição, prefere não usá-los para conversar. Gosta de olhar nos olhos de quem fala e a elegância e a seriedade cumprem uma função: não desperdiçar a chance de causar uma boa impressão.
Hoje, cada conversa pode ajudá-lo a colocar a vida de volta nos trilhos. Seu nome é José William, 60. Há um ano, ele não tem onde morar e vive no abrigo da Arsenal da Esperança, no bairro da Mooca. A instituição oferece casa, comida, televisão e oficinas artísticas para mais de mil homens que não têm onde viver na capital paulista. Claro, há também uma biblioteca onde José pega emprestado livros de Jorge Amado ou as peças de William Shakespeare. Não ter uma casa não é algo a ser ignorado em sua biografia, mas não é a principal característica de sua história. José é escritor.
A ONG onde mora desde o fim de 2020, quando perdeu o emprego com a pandemia da covid-19, é um dos maiores abrigos para pessoas sem-teto e população em situação de rua em São Paulo. No passado, foi uma hospedaria para imigrantes europeus e uma fábrica. Por isso, lembra a grandiosidade de escolas tradicionais com os vários galpões industriais construídos e abandonados na capital paulista.
Em 25 anos de existência, a Arsenal calcula ter abrigado 65 mil homens, servido 25 milhões de refeições e feito 2 milhões de atendimentos de assistência social e mais de 370 mil atendimentos médicos. É ligada a uma fraternidade católica criada na Itália em 1964 e, no Brasil, é comandada pelo padre italiano Simone Bernardi. Toda a operação é feita por funcionários e voluntários e paga com doações.
O currículo do padre Bernardi possui feitos notáveis e a lista continua a crescer mesmo durante a pandemia. Durante 96 dias em 2020, ele se manteve trancado com mil homens na Arsenal para impedir a contaminação pelo novo coronavírus. No início do ano, auxiliou os hóspedes a se vacinarem contra a covid-19 e, aos poucos, a imunização permitiu a retomada de projetos, como um concurso literário. Entre os participantes da competição, estava um recém-chegado: seu José.
Concurso literário
Desde a fundação da ONG, voluntários da Arsenal escrevem cartas para parentes dos homens abrigados. Muitos, porém, usavam o serviço como desculpa para desabafar. “Era uma coisa meio como aquele filme ‘Central do Brasil'”, afirma o padre para Ecoa. Mas, ao contrário do que se possa pensar, muitas pessoas em situação de rua sabem ler e escrever. Os funcionários perceberam que muitos chegavam com caneta e uma história em particular e, assim, criaram o concurso literário em 2007.
Os vencedores tiveram o texto impresso e afixado nos corredores da Arsenal e, principalmente, documentados em um lugar seguro. “Os textos são um patrimônio histórico. São histórias que mostram que a vida de cada um não é invisível, não é insignificante e tem valor”, acrescenta o coordenador.
Registros
O trabalho com a população em situação de rua costuma ser fugaz. As voluntárias do Arsenal avisam que é comum que os abrigados sumam por dias ou semanas e retornem em um estado de saúde social pior ou melhor. No dia em que a reportagem foi até o local, apenas seu José cumpriu com o combinado e apareceu para ser entrevistado.
A dependência química, a saúde mental, os problemas na família, o desemprego, a falta de esperança e perspectiva os fazem sair e entrar na ONG, onde são livres para circular e retornar para as ruas. Os textos relatam a vida nesses termos.
“Quantos projetos postergados, quantas coisas não ditas, quantos perdões a pedir, quantos abraços a dar, quantos ‘eu te amo’ a proferir, julgavas ter o tempo à sua disposição. Agora o tempo se esvai, como areia em suas mãos”, escreve um participante do concurso chamado Ezequias.
Um escritor chamado Isaías escreve: “toda história começa com um ‘era uma vez’, porém essa história é dos dias atrás, essa história é a minha”, e continua, “sou de uma família de situação financeira razoável, porém eu nunca tive o privilégio de usufruir nada. Desde criança fui rejeitado pelos meus irmãos, sempre apanhava, sempre fui humilhado tanto em casa como na escola”.
“Basta olhar no fundo dos meus olhos para perceber que já não sou como era antes, e que tudo que preciso é de uma chance de alguns instantes”, escreve um homem chamado Laerte.
A pandemia aparece na maioria dos textos. Um homem chamado Leônidas Henrique descreve a vida de um papagaio “diferente e esperto”, criado “com hábitos humanos” e que vê a família que o criou morta pela covid-19. No final, o papagaio se recolhe em um canto da casa para morrer, onde se lembra de uma frase aprendida com os humanos. “Toda criatura criada pelos seus não morre nunca, renasce novamente”.
Textos irão virar livro
Seu José afirma ter sido demitido de um emprego como jardineiro durante a pandemia após anos no trabalho como segurança. Como muitos migrantes, lembra o dia exato em que chegou a São Paulo após sair de São Luís, no Maranhão: “27 de setembro de 1997”. Daquela época, lembra-se dos prédios altos na chegada e da estação em estilo inglês da rodoviária que funcionava na estação da Luz. Diz ter concluído o ensino fundamental.
Mas quando perdeu o emprego, também enfrentou um divórcio marcante registrado em textos e poemas. “No silêncio da noite// Só pensando naquela linda morena // Foi um grande momento da minha vida// E disso tudo o que eu sentia por ela”, escreve.
José não detalha como era o relacionamento com a família e, embora tenha quatro filhas, foi morar sozinho após o divórcio. Não conseguiu pagar o aluguel em uma casa na zona leste de São Paulo e dormiu por 15 dias nas ruas antes de ir para o Arsenal da Esperança. Dormiu na praça da Sé e no Brás, onde a cidade lhe foi mais hostil e teve o celular roubado. Apesar disso, ainda se gaba de ter mantido a caneta.
“Às vezes eu sento num banco da praça e fico olhando as pessoas passarem. Pego qualquer papel que tiver, até guardanapo, e vou escrevendo. No silêncio vou buscando inspiração”, diz. Ele tem cadernos com dezenas de poemas, músicas e textos. “Escrever me alimenta mais um pouco”, acrescenta.
O livro com o texto de José e outros escritores da Arsenal será lançado no dia 8 de dezembro, com uma cerimônia para a premiação simbólica, e será distribuído na instituição. Nas próximas semanas, seu José também espera conseguir uma vaga para um curso de informática para, quem sabe, conseguir uma vaga como porteiro em algum dos incontáveis prédios da cidade de São Paulo e até começar a digitar os textos que escreve. “Eu tenho aquele desejo de, mesmo sendo anônimo, escrever um livro”, diz. “Todo mundo tem uma história, né?”
Como ajudar?
Arsenal da Esperança
PIX: CNPJ 62.459.409/0001-28
Transferência ou depósito: Santander – Agência: 0144 – Conta: 13-003147-6 – Associação Assindes Sermig – CNPJ 62.459.409/0001-28
Entregar doações: R. Doutor Almeida Lima, 900, Mooca, São Paulo (SP)
Fonte: UOL Ecoa, por Marcos Candido