Didática de Fabiano Torres aproxima alunos de assuntos abordados em aula
Do quintal de casa, rodeado por plantas e árvores, como um pé de acerola com mais de 18 anos, o professor Fabiano Ramos Torres, 45, encontrou o espaço para dar aulas durante a pandemia.
Morador do bairro Parada XV de Novembro, no distrito de Itaquera, zona leste de São Paulo, ele leciona filosofia para adolescentes do ensino médio a partir do olhar periférico.
O trabalho pedagógico de Fabiano também mescla o “dialeto” das periferias e isso o aproxima dos alunos na hora de ensinar. “Segundo Mano Brown: ‘não é gíria, é dialeto’. Jogava esse vocabulário não só na aula de filosofia, mas para falar de ciências e das artes. Sempre buscando o momento oportuno. É um trabalho lento e cuidadoso”, conta.
Ele é doutor em Educação pela USP (Universidade de São Paulo), onde fez bacharelado e licenciatura em filosofia. Também é professor visitante na UFABC (Universidade Federal do ABC) na área de ensino de filosofia.
Fabiano não imaginava se tornar professor, mas se encantou pela profissão e seguiu a carreira acadêmica. A filosofia havia sido retirada do currículo das escolas públicas e retornou apenas em 2006, um ano após a sua formação na área.
Antes disso, o educador não tinha perspectivas quanto à filosofia no mercado de trabalho, até cogitou fazer faculdade de letras posteriormente.
Lecionar abriu portas, mas também estabeleceu convicções. “Quis passar o máximo de tempo na escola pública sendo professor-doutor. E fazer a ‘molecadinha’ da periferia conhecer esse universo. Me reinventei como professor”, diz.
Os dreads longos e barba afastam a imagem do professor tímido dos primeiros dias em frente à uma sala de aula.
“Desde a faculdade existe a síndrome do impostor, o não pertencimento. O pensamento é que em qualquer momento um segurança vai te tirar dali.”
Em 2007, ele se mobilizou para criar grupos de estudos com os alunos e apresentar a vida acadêmica. “Quando passei a dar aula já estava fazendo projeto de mestrado, era uma linguagem completamente desconhecida para eles. Falava em mestrado e eles ficavam ‘hãm?’”, explica.
A proximidade com os alunos é também uma característica levada desde os primeiros passos como professor. De convidar os estudantes para visitar os campus da USP até participar das ocupações dos secundaristas, mobilização estudantil que ocupou escolas em todo o Brasil em 2016.
Dessas experiências, surgiu a colaboração no livro “Crônicas do Ensino Básico”. A coletânea de textos aborda as diferentes perspectivas da educação e do processo de aprendizagem vivido por cada professor.
Escolas Públicas
Fabiano viveu parte da infância e adolescência em Guaianases, na zona leste da capital, e depois se mudou para Guarulhos, na Grande São Paulo, onde fez todo o ensino médio. A partir disso, levantou a bandeira da escola pública como escolha política.
Durante os 15 anos como professor, atuou nas escolas estaduais Ruth Cabral, em Itaquera, e Oswaldo Catalano, no Tatuapé, ambas na zona leste.
Por ser morador dali, era comum encontrar os alunos durante o percurso até as escolas, no micro-ônibus ou no trem. Alguns vinham até da Grande São Paulo, como era o caso daqueles que se deslocavam de Mogi das Cruzes até o Tatuapé — aproximadamente 56 km de distância.
Quando fazia o trajeto com os estudantes, as aulas começavam ali mesmo, conta.
“A gente compartilhava a mesma coisa, a mesma vivência. Falavam para me respeitar porque também era da quebrada”, brinca.
Laboratório
Essas aulas de filosofia, seja na rua ou na sala de aula, sempre foram um laboratório para Fabiano. Ele se propôs a experimentar linguagens, performances e formatos. “Já aprontei bastante durante esses anos”, comenta.
Uma dessas experiências foi contar o Mito da Caverna (metáfora criada pelo filósofo grego Platão) de forma inusitada. O professor entrou acorrentado no espaço anexo à sala de aula e começou a narrar a história. Era uma salinha apertada que permitia apenas colocar as mãos para fora.
“A aula virou baderna. Chamei a atenção deles com as mãos enquanto gritavam: ‘o professor está preso!’. Pouco tempo depois estavam todos vidrados. A notícia já tinha percorrido, veio gente da escola inteira ver”, conta animado.
E finalizou a aula dizendo: “e então, somente vocês podem se libertar, esse foi o Mito da Caverna. Até a próxima aula”, deixando os alunos instigados.
Outro experimento foi performar a “venda” de alunos pelas ruas para falar sobre o período da escravidão. “Juntei uns 15 malucos e saímos anunciando “estudantes da escola pública à venda”, descreve.
Nessa atividade, percorreram trechos como a Sé e o Anhangabaú, no centro de São Paulo, que fizeram parte da rota de venda de escravos africanos durante o período escravocrata, que durou três séculos (de 1550 até 1888). “Foi uma experiência forte, as pessoas se aproximavam curiosas para ouvir.”
A mais recente foi observar a arquitetura da Cohab II, em Itaquera. Fabiano saía com os alunos pelas ruas para “ler” os muros que formavam os becos das periferias. Nessas andanças, discutiam as políticas para o espaço público e refletiam como a arquitetura periférica impactava no dia a dia deles.
Por iniciativas assim, ele recebeu o convite da faculdade Belas Artes para realizar um intercâmbio entre a instituição e a escola pública. A proposta era dos futuros arquitetos irem até o bairro e traçarem melhorias.
“Eles [estudantes universitários] ficaram espantados com o conhecimento dos ‘pivetes’ de 15 anos. Ficava perguntando como sabiam daquilo. Mas é através de muito esforço”, conta.
No final, os alunos foram até a faculdade para assistir a apresentação dos projetos. A estrutura do prédio e os corredores da faculdade eram novidades, ficaram impressionados, diz o professor. “Meus alunos detonaram os projetos por estarem fora da nossa realidade periférica, pontuaram várias falhas”, relata.
E Fabiano é consciente de que também aprende com seus alunos. “Não há professor que não seja educando. A filosofia na educação é estruturada a cada passo, conceito após conceito e ajustada a linguagem à realidade vivida”, diz, resgatando a frase do educador e filósofo Paulo Freire (1921-1997).
Grupo de estudos sobre as periferias
A quebrada é a soma da capacidade de aprender, se adaptar e produzir soluções. Com foco nisso, Fabiano criou também um grupo de estudos na UFABC sobre as periferias.
O grupo é formado por pessoas de diferentes áreas: educação, saúde, arte e cultura, entre outras. A iniciativa tem como objetivo estudar as diferentes experiências da educação nas periferias, de forma indisciplinar.
A ideia é abranger não somente o conhecimento compartilhado em âmbito escolar, mas também em cursinhos populares, slams, batalhas de rap, teatro, ocupações culturais, etc. “É o resumo de tudo que eu fiz até aqui”, conclui o professor.
Fonte: Agência Mural, por Gabriela Alves