Uma grande cômoda. Uma grande cômoda entalhada, modelo provençal, platinada de branco. No melhor, mais arejado, mais nobre e mais importante local da casa. Uma cômoda interessante, peculiar, única, com inúmeras gavetas, que lembram um roupeiro, todas numeradas e com fechaduras.
Gavetas organizadas como numa sequência lógica, talvez considerando o tempo... Gavetas incri- velmente ajustáveis aos seus conteúdos diferentes, singulares: alguns pequenos, outros intensos e até os indescritíveis ou incomensuráveis... Algumas gavetas, tão constantemente abertas, já até perderam os segredos das chaves: praticamente se abrem sozinhas sem sequer sustos ou barulhos.
Chaves grandes que compõem um molho vigiado por um guardião alto, assustador, escondido em um manto negro com capuz que impossibilita a visão do seu rosto, mas ressalta seus olhos atentos e vigilantes. Insisto que é um guardião, a autocensura não pode ser um ente feminino, não se prestaria a essa função cruel. As chaves nem sempre são necessárias, repito. Algumas vezes apenas uma canção, uma palavra, um perfume ou uma foto fazem abrir uma e outra gaveta das emoções da cômoda da memória.
Mas não há guardião capaz de proibir o uso da chave da gaveta 37 da cômoda da minha memória, por mais chaveada e proibitiva que ela seja. Sei exatamente todo o seu conteúdo quase escondido, sempre lamentado, mas nunca esquecido. Sem nenhuma chave, nenhuma tranca, nenhum artifício.
Com muito sofrimento vejo sempre o que há nela: saudade do que não vivi, do que não vi, do que eu deveria ter feito e não fiz, e agora...
Agora não há mais tempo...
Este texto faz parte do livro Revelar-se Autor 2019
Educador(a)
Ana Nilza Cifuentes Folhe
EMEI Intendente Gomes Cardim
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